Sobrevida doadora

|março 23, 2020 |

José Paulo T.

“De repente” nada interessa tanto, nada faz sentido fora desse sentimento de náufragos e órfãos de nossos amanhãs.

A única instituição que permanece, e sobrepõe-se às demais, essa, a vida que é a nossa primordial presença reunida neste “de repente” planetário.

A humanidade inteira emparedada, na unanimidade da mais sólida solidão, que é também a mais solidária doação. A doação do cuidado, da mútua proteção, do zelo essencial, para que, juntos/separados, todos possamos resistir e vencer e reinventar novos modos de viver.

Nossa frágil vida pode ser interrompida por algo mais poderoso que a tecnologia e toda ciência que dispomos; porém, com a inteligência humana e os afetos afirmativos, podemos sobreviver ao naufrágio existencial.

Fomos pegos pelo alerta planetário do “de repente” anunciado, inesperado, revelado pouco a pouco em sua letalidade sem fronteira, transmissora, avassaladora.

Entre zonas de riscos, limites incertos de que “aqui está protegido”, ou não, a consciência da superação de que somos capazes de oferecer aos destinos humanos a sobrevida doadora, e ultrapassar a inocência desinibida da total sociabilização.

E mais que ‘encasar-se’ na sólida solidão existencial ou estar só e socialmente só, poder completar a lição que faltava, esta, resistir à nossa finitude, à nossa pequenez, à nossa insensatez, no exercício vital do encontro da chance e a piedade, a mais solidária das atitudes humanas que se nos impõe; o heroísmo de todos os heroísmos, de salvar-se a si salvando-se, das circunstâncias, o outro.

Desenlace irreparável da aporia: o sentir-se junto, separado, a multidão de solidários solitários em retirada, protegidos uns aos outros, em casa. Mas não responder com a indiferença ou morbidade igualmente letal nessas horas; ao contrário, tornar-se partícipes do fluxo vital, da fé suprema na solidariedade libertária do existir essencial.

Ninguém está fora deste círculo tão íntimo e de concentrado desamparo, na frágil humanidade dos próximos distantes, elos renascentes deste “de repente” que está longe, muito longe, de ser o fim

Cidade Futura, 22 de março de 2020.

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